Espera-se que o desenvolvimento de todos os organismos cumpra uma sucessão de mudanças interrelacionadas que os levarão do nascimento à morte. Sabemos que existem variações nesta regra, tanto em função das condições de largada como na qualidade dos momentos oferecidos a cada um, enquanto todos nos encaminhamos ao final. Talvez por isso, com maior ou menor grau de consciência acabamos adotando medidas de precaução em relação àquelas circunstâncias que podem determinar crises potencialmente anuladoras do que de melhor nossas relações em vida tendem a oferecer.
Há nisso uma interpretação intuitiva a respeito daquilo que os ecologistas chamam de pontos de ruptura. Aqueles marcos que, uma vez superados, determinam alterações vitais irremediáveis, irrecuperáveis, definitivas.
É este o tema de fundo nas discussões sobre a educação dos nossos filhos, sobre a tragédia climática, sobre o aquecimento global, ou sobre o avanço do fascismo e suas implicações entre nós.
Ocorre que por algum motivo, eventualmente mesmo percebendo as condições que determinam um possível desastre, nada fazemos. E mais adiante, quando aquilo se repete, se expande, se multiplica e ativa outros desastres que acabam se conectando, vem o pior: alimentamos e amos a ter que encarar um ponto de não retorno. Quando a articulação das energias destrutivas supera a capacidade de regeneração das forças que atuam contra a degradação, e isso se mantém por algum tempo, os organismos entram em colapso. Isto vale tanto para a saúde das pessoas, uma a uma, como para os grupos, as sociedades, os ecossistemas e a biosfera. O bioma Pampa, por exemplo, que já vivencia riscos de transformação irrecuperável, está muito próximo de alcançar seu ponto de não retorno.
Sob o ponto de vista individual, o exemplo triste é de que esta semana, na 40ª Maratona Internacional de Porto Alegre no último sábado (7), um jovem de 20 anos morreu a um km da linha de chegada. Seu metabolismo, como o do Pampa, foi estressado a tal ponto que perdeu condições de viabilidade. Com isso, todas suas possibilidades, relações, projetos e sonhos se desvaneceram para sempre. Algo triste, irrecuperável, e que poderia ser evitado.
Algo assemelhado está ocorrendo na faixa de Gaza, aconteceu com os yanomamis durante o governo Bolsonaro e se mantem entre nós com a ameaça de expansão fascista, deletéria para a sociabilidade das relações de parceria mutua (e respeitosa) que precisamos defender.
Me refiro neste ponto ao depoimento de Bolsonaro e outras lideranças golpistas na última segunda-feira (10). Aquelas informações não cessam de repercutir nas mídias, sob diferentes e até mesmo contraditórias interpretações. Para defender meu argumento sobre a relação entre aquilo e as ameaças de pontos de não retorno, o a resumir a minha leitura.
O ministro Alexandre de Moraes alertou que os co-réus não precisavam falar a verdade. Então, o ex-presidente da República, alguns ex-ministros de Estado, chefes do exército e da marinha nacionais, generais e lideranças do governo Bolsonaro, mentiram.
Mentiram muito. Ao vivo, em rede nacional.
Debocharam da sociedade, fizeram piadas foram arrogantes e pretensiosos. Sorriam afirmando que sim, que tinham participado dos eventos de alta cúpula onde se tramou o golpe. Mas nunca suspeitaram nem ouviram qualquer coisa relacionada ao golpe. Não sabiam por que aquelas reuniões haviam sido convocadas, mas lembram que ali se tratou apenas de assuntos triviais sobre os quais não tinham maiores lembranças. Nada sabiam do punhal verde amarelo nem da minuta do golpe nem da Copa 22. Leram a respeito e ficaram chocados pela falta de verossimilhança entre o que as mídias informavam e a realidade dos fatos.
Quanto aos testemunhos de colegas de farda, alegaram que aqueles eram maus militares… mentirosos, oportunistas e desleais em busca de colocação no novo governo. Melancias, verdes por fora e vermelhos por dentro. Comunistas.
Quanto às gravações com identificação de suas vozes incitando crimes, alegaram incompreensão de estilo e desconhecimento dos ouvintes, quanto à típica retórica da caserna, eram desabafos…talvez com algum exagero (ministros do STF recebendo 30 ou 50 milhões de dólares…) ou destempero… E pediram desculpas. Estariam apenas sendo fiéis a suas naturezas. O problema real? Não os fatos, mas sim a deslealdade de alguém: aquelas gravações não deveriam existir.
O ex-presidente afirmou nunca ter pressionado ministro algum. Disse que avaliou as possibilidades e acabou decidindo “entubar” os resultados da eleição porque já não havia mais o que fazer e ele nunca pensou em sair das quatro linhas. Destacou que jamais daria atenção aos malucos que queriam um golpe… não havia condições/clima para isso. Debochou também dos patriotários que lhe enviaram R$ 18 milhões em doação por pix, em “sinal de que gostavam da gente”. Coisa justa, afinal ele não iria trabalhar de graça.
Para completar, pediu licença para uma piada e convidou o Juiz que teria sido assassinado caso o golpe prosperasse, e que relatava o processo em que seus crimes estavam sendo avaliados, para trabalhar para ele. Como subordinado. De vice ou como ministro, após a eleição de 2026 onde ele não pode concorrer por ser inelegível…
Estes são ou não são sinais de colapso, de ameaçadora aproximação de um ponto de não retorno, que está a exigir nosso empenho, urgente, para contenção da erosão de valores e defesa das instituições republicanas?
Voltando à biologia.
Sabemos que o ponto de não retorno (nos biomas) se evidencia tanto pelo desaparecimento de espécies chave para cada ambiente, como pelo avanço da degradação da vida dos solos, da qualidade das águas e das possibilidades de desenvolvimento humano, em seus territórios. Nas matas das araucárias isso pode ser ilustrado pelo que ocorre com o desaparecimento do pinheiro brasileiro. Na mata atlântica, pelo rareamento da palmeira juçara.
O pinheiro e a juçara são plantas mães, matrizes que prestam serviços essenciais à manutenção de redes de relações tróficas e simbióticas, que sem elas estão em risco de desaparecer.
Por cegueira e ganância imediatista, por ignorância humana, pelo valor da madeira de pinho e do palmito/pupunha de juçara, as conexões vitais que aquelas árvores sustentam, estão sendo eliminadas. E o resto vai junto. Assim como no pampa gaúcho e também nas áreas de floresta e nos ecossistemas delas dependentes, avançam as lavouras de soja e se consolida o rastro de degradação que as acompanha.
Com isso, os territórios, a água circulante e todos que ali habitam estão sendo envenenados por agrotóxicos, empurrados em direção a pontos de não retorno.
O que nos coloca diante da necessidade de buscar caminhos para enfrentamento do que tememos, com urgência, antes que aquilo se imponha como inevitabilidade sem retorno. Primeiro, identificar o que não queremos que aconteça – construir mecanismos que bloqueiem suas tendencias. Depois, identificar o que queremos construir ou manter, e mapear os atores que podem contribuir neste sentido. Finalmente, agir, estimular e contribuir para a viabilização de atitudes e projetos que se articulem naquele rumo. Protagonismo e alianças que cooperem para minimizar os riscos de rupturas metabólicas tão dramáticas como as epidemias, o câncer, a desertificação e o fascismo.
No Paraná, a III Jornada da Natureza distribuiu este ano cerca de 25 toneladas de sementes de araucárias, palmeiras juçara e outras árvores nativas daquela região, e projeta ir além. No assentamento Contestado, onde a Jornada foi encerrada, o MST também implantou um viveiro que pretende alimentar o plantio de um milhão de árvores. A cooperativa Terra Livre mantém viveiro de hortaliças (orgânicas) e produção de frutas para abastecimento de merenda escolar em 109 escolas de Curitiba.


Na sociedade, se faz evidente que a estes marcos positivos, em favor da vida, se opõem outros, que operam no rumo contrário, acelerando fatores de degradação. Estes últimos correspondem àqueles referenciais cuja reprodução precisamos impedir, porque mesmo quando beneficiam alguns (como a soja) comprometem a saúde de todos. Todos, inclusive os descendentes daqueles que operam como agentes da crise, dependemos dos ecossistemas que as monoculturas do agronegócio ecocida estão destruindo.
O mesmo raciocínio se aplica, em termos de degradação da sociedade, ao caso dos exemplos evidenciados pelo comportamento daqueles golpistas e dos desinformados (ou “malucos”) que os apoiam. Eles lidam para que se repitam aqui tragédias como as verificadas em Gaza, que vem sendo estimuladas entre nós através de pressões legislativa para estrangulamento das possibilidades de investimento do governo, pela destruição ambiental ou em favor do garimpo e do marco temporal.
Eles precisam ser enfrentados, e derrotados, em todas as frentes.
As eleições de 2026 já começaram e através delas se fará indispensável que a solidariedade amplie sua representação no senado, nas câmaras de vereadores e nos executivos estaduais.
Se trata, literalmente, de construir a nós mesmos, como um povo que se respeita, que sabe o que quer e que não se omite em relação a isso
Manter em pé o que resta da democracia representativa não basta. Precisamos mais. Precisamos de uma democracia participativa, onde cada um(a) faça o que puder/a sua parte, com consciência de que a harmonia, a paz, o pampa, as florestas e o futuro deste país, dependem de nós.
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Imagens da III Jornada da Natureza
Sobre a palmeira juçara , ver este belo trabalho do Coletivo Catarse:
Episódio 2 – Cultura em transformação
Episódio 3 – Alimento para vida
Música Refloresta de Gilberto Gil, Gilsons e Bem Gil.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.